top of page
  • Foto do escritorVictor Zequi

O documentarista e o shokunin – Jiro Dreams of Sushi (Análise)

Atualizado: 27 de nov. de 2020


O mestre e sua equipe. Jiro é a analogia perfeita ao grande diretor de cinema.



Analisar um documentário pode ser tarefa tão complexa quanto a realização de um. Ao discorrer sobre uma obra de ficção, usualmente julga-se quanto à criatividade e originalidade da peça, a unicidade das linguagens, as performances dos atores, a qualidade técnica da forma-conceito; em alguns casos, até mesmo quanto à pertinência e coerência da mensagem passada – aspectos ficcionais que, vale lembrar, nunca estão completamente desconectados da realidade de modo que não se possa estabelecer conexões valiosas entre o que está contido na tela e o que está fora. No documentário, entretanto, não se trata apenas de julgar quanto a todos esses (e outros) aspectos, que seguem sendo fundamentais e constituem, afinal, o próprio produto audiovisual em sua forma última. Mas seria covardia (ou mesmo ingenuidade) permitir que, nessa vertente cinematográfica, a análise de todas essas nuances antecedessem ou se sobressaíssem a um elemento crucial que, antes mesmo de ser o objeto de investigação do documentário – pois em alguma medida, a ficção também se propõe a interpretar o mundo e lançar sobre ele uma nova perspectiva – é particularmente a sua matéria prima; que ao contrário da matéria prima da ficção, não pode (ou na maioria dos casos, não deve) ser moldada e controlada de acordo com as pretensões do realizador: a vida dos fatos (para não usar termos relativos como “vida real” ou “realidade”).


Isso não significa que o documentário seja “superior” à ficção, ou necessariamente mais difícil de ser realizado; nem que no documentário a realidade não seja de muitas maneiras recortada e modulada de modo a passar, assim como na ficção, uma mensagem parcial e em todos os casos, fictícia, pois não é a própria vida dos fatos (e nesse sentido, todo documentário é uma ficção; ao mesmo passo que toda ficção não deixa de ser, em alguma medida, o documentário de um processo artístico – podendo-se excluir algumas animações que ainda assim, muita vezes, dependem de registros e referências do mundo “real”); mas significa apenas que, de modo a extrair do mundo dos fatos os instantes que se busca registrar para constituir o documentário, é necessário, em muitos casos, sacrificar aspectos que, talvez, na visão de certos cinéfilos por demasiado “exigentes” (que não entenderam nada sobre cinema, vida, ou o ponto transcendental em que os dois se cruzam) diminuirão a sua qualidade e mérito, unicamente por não se equiparar formalmente ao “transe” ficcional onde a estética é apurada e tudo se encaixa perfeitamente.


Nada disso é desculpa para realizar documentários ruins, ou desagradáveis formalmente, até porque o grande (ou A grande) documentarista é aquele capaz de equilibrar tudo isso de modo a extrair o máximo da vida dos fatos, e ainda da maneira mais primorosa possível, cinematograficamente (ou audiovisualmente) falando. É isso que torna a obra de Eduardo Coutinho tão interessante e prestigiada, pois ao preferir (escolher) capturar a mais profunda humanidade e sinceridade de seus entrevistados, o diretor se abstém de quase qualquer intervenção expressiva que não seja a de seus próprios gestos e palavras, adotando uma gramática mínima – nas palavras de João Moreira Salles – que em conjunto aos gestos e relatos dessa gente toda (habilmente selecionados e unidos na edição – que é a verdadeira direção no documentário) cria uma combinação perfeitamente equilibrada que potencializa a mensagem, e majestosamente bem, a não ser por aqueles que verdadeiramente não se interessam pela sinceridade e a humanidade, como muitos “tecnocratas” que criticaram Coutinho por fazer um “não-cinema” de entrevistas. Um documentário recente que se apropriou, e muito bem, dessa linguagem é Humano (dir. Yann Arthus-Bertrand, 2015).


Há outros bons exemplos. Em Diário 1973-1983 (lançado em 1983), o também brasileiro David Perlov documenta, em película 16mm, 10 anos de seu cotidiano íntimo e familiar em cidades como Tel-Aviv, Jerusalém, São Paulo, Belo-Horizonte, Paris; e o faz de maneira extremamente política, afetuosa, existencialista; de uma tal maneira profunda que alcança níveis de intimidade inatingíveis mesmo ao mais dedicado dos influenciadores de lifestyle comprometido a registrar cada hora de seu dia no Instagram (sabemos que a comparação é injusta). Jonas Mekas passou a sua vida inteira filmando amigos, familiares e tudo o que via pela frente, como um fotógrafo de rua, e na sala de montagem, transformava tudo num alucinatório jogo de imagens e sons que emulam perfeitamente a dinâmica da memória humana. Adirley Queiróz transformou em uma ficção-científica alucinante e terceiro mundista a opressão real sofrida pelas populações periféricas à Brasília em Branco Sai, Preto Fica (2015) – um docudrama inventivo que denuncia o absurdo e a violência da sociedade contemporânea brasileira. Salomé Lamas, as recém falecidas Agnès Varda e Jocelyne Saab; são só mais alguns exemplos de mulheres realizadoras que equilibram com maestria e originalidade as variantes da linguagem documental. Portanto, toda a análise deste gênero deve levar em conta a (absurda) vida dos fatos como elemento de suma importância.


O fato e a foto. Jocelyne Saab a filmar em Beirute, 1982


Em Jiro Dreams of Sushi, um documentário com menos de 80 minutos disponível na Netflix, somos apresentados à história de Jiro Ono, um ultra prestigiado mestre sushiman que aos 85 anos não deixa de trabalhar um dia sequer em seu restaurante de três Estrelas Michelin, localizado no subterrâneo de uma estação de metrô em Tóquio. Para muitas pessoas (especialmente os mais desejosos de inventividade no cinema e na arte) esse pode ser apenas mais um documentário normal. A fotografia, os planos, a progressão narrativa e a montagem são bastante clássicos, e não há qualquer elemento que insira o “autor-diretor” e sua visão no meio da história; sem no entanto retratar os fatos como se fossem uma verdade absoluta, frequentemente associando cenas, ou deixando o silêncio evidenciar as contradições de nosso “protagonista-herói” – que apesar de seu talento e determinação, não se porta em nenhum momento como herói, aderindo a uma filosofia de vida e atitude diferentes: a do shokunin.


O shokunin é, em contextualização resumida, um termo usado para representar o trabalhador (a tradução mais próxima seria “artesão”) que se dedica e entrega inteiramente ao seu trabalho, buscando aperfeiçoá-lo ao máximo, mas não no intuito de superar aos outros com suas “vantagens competitivas”, como na mentalidade ocidental – e nesse sentido o filme apresenta, sem a necessidade de narrações ou diagramas, paralelos valiosos entre a cultura do ocidente e o oriente, e suas mutações na sociedade globalizada. O shokunin busca ao contrário, através de seu trabalho duro, superar a si mesmo. Quando Jiro explica o seu processo cotidiano e minucioso de aprimoramento, diz “Há sempre um desejo de realizar mais. Vou continuar subindo, tentando chegar ao topo, mas ninguém sabe onde fica o topo”. É justamente nesse ponto que o shokunin se diferencia de outros trabalhadores “bem-sucedidos”: para o último, é possível chegar ao topo, já que a referência são sempre os outros. Para o primeiro, o topo é tão inatingível quanto o céu e os deuses, pois o trabalho é uma questão de espírito.


Ora, seria prudente então sugerir uma tradução outra possível para shokunin? A palavra “Artista” (pois é inegável o compromisso fatal de Jiro com o seu ofício, a ponto de colocá-lo muitas vezes antes de sua vida, ou de colocar sua vida em função dele). Isso depende do que se entende por “artista” hoje, cuja atividade parece mais do que nunca girar em torno de um aspecto particular: a vaidade (especialmente em tempos de indústria midiática, celebridades, redes sociais). Pois no que tangencia a esse ponto, o shokunin está longe de ser um artista. Estranho ao espetáculo, preferindo as recompensas modestas do processo rotineiro (Jiro recebe seu troféu Michelin e mais tarde, vai trabalhar), o artesão tem um compromisso maior do que o reconhecimento – que embora bem vindo, resultará sempre inútil, pois só ele mesmo é capaz de dar ao seu trabalho o valor verdadeiro. O próprio Jiro responde a essa pergunta quando lhe indagam se, na visão dos clientes, o sushiman pode ser considerado um artista por trabalhar “num palco” frente aos clientes, se comparado a outros cozinheiros (de tempurá ou soba); respondendo simplesmente “Pode ser verdade. O meu trabalho é o mais fácil”. Muitos que se consideram artistas jamais responderiam a essa pergunta com tamanha humildade. Jiro só é capaz de dizer isso por reconhecer o tamanho de seu trabalho e devoção, e por saber que todos – da sua equipe aos clientes – reconhecem isso sem a necessidade de lhe presentear com troféus, o que nos leva ao outro ponto fundamental do shokunin: seu compromisso com o coletivo.


O shokunin não enxerga seu ofício senão como um serviço prestado à sua comunidade. Por isso mesmo, ele não apenas busca uma proximidade afetuosa com seus clientes, mas está diretamente e afetivamente envolvido com toda a sua cadeia produtiva. Ele precisa conhecer o processo e a ética desde seus ajudantes, seu fornecedor de arroz, de atum, de camarão; até o arquiteto responsável por projetar a filial de seu restaurante (e de preferência, o editor da revista que irá divulgar a notícia). No fim do dia, ninguém estará trabalhando para um grande artesão/cozinheiro/empresário. Por sentirem o seu trabalho valorizado, por criarem uma conexão filosófico-moral com o serviço prestado, continuarão sempre se aprimorando, juntos, certos de que estão construindo algo com um mesmo propósito (o vendedor de arroz se recusa a vender para o Hyatt Hotel: “mesmo se eu vendesse, não iam saber prepará-lo como Jiro. Se ele deixar, eu vendo!”). Não se trata de uma “necessidade de se expressar”, que é até onde muitos artistas limitam sua motivação criativa, mas antes de tudo, uma necessidade de prover, de compartilhar, de ensinar pelo exemplo. Jiro não é o herói no qual foi transformado – ele é o mestre; o herói salva a cidade no momento em que a ameaça torna-se insuportável (o filantropo que doa parte de sua fortuna no pico da pandemia). O mestre cuida, todos os dias, para que ela não torne a aparecer. Não é preciso nem dizer o quão problemáticos são os filmes de ação que se veem por aí todos os dias.

Quando o crítico da Michelin vai até o seu restaurante para a avaliação, é seu filho Yoshikazu quem prepara e serve os pratos. Jiro deixa o palco e renuncia à sua vaidade no momento mais crucial para a história de seu negócio. Isso por si só é admirável, mas é possível ir além: Ao escolher dar um passo atrás para que outra pessoa seja posta à prova em seu nome, Jiro está, apesar de todas as suas criações “artísticas” na culinária, alcançando também a quintessência da arte, qual todo artista anseia para se nutrir e busca provocar, através da criação, no mundo e nas pessoas ao seu redor: a inspiração.


O documentarista também sempre sofreu quanto a essa classificação. Nunca se decidiu ao certo se o documentário é arte, ou se é saudável ao documentarista (ao jornalista, ao crítico, ao repórter) que tenha pretensões artísticas. O que se teme aí é justamente o excesso de vaidade, pois o juramento do documentarista é, sobretudo, usar de suas habilidades e conhecimentos para documentar e expor os fatos, o mundo e as pessoas, e não suas “visões pessoais”. Neste caso, o documentarista estaria muito mais próximo de um artesão do que de um artista. Mas além de ser ingênua a crença numa suposta “imparcialidade” ou “impessoalidade” na comunicação, essa separação é injusta. Dizer que Um Homem com uma Câmera (dir. Dziga Vertov, 1929) não é uma obra de arte, é descreditar todos os filmes subsequentes (documentais ou não) que se inspiraram em suas conquistas. Dizer que Coutinho não é um artista pois não é ele quem está dizendo, é ignorar seu potencial inspirador capaz de levar seus entrevistados a revelarem coisas da ordem do mais íntimo e profundo. Ao mesmo tempo, não há dúvidas de que mais da metade do que se vê no jornalismo, na TV e em alguns casos, no cinema, não é arte – justamente por trilhar um caminho excessivamente “imparcial” que em todos os casos é falho, e em alguns casos, segue sendo extremamente vaidoso.


No Intenso Agora (2017) "Como filmam as câmeras oficiais e como filmam as câmeras militantes, e como essas câmeras filmam quando se tornam as câmeras do regime?" João Moreira Salles



Existem, portanto, artesãos artistas e artistas artesãos. São esses que, em prol do coletivo, colocam seu talento à serviço do mundo, não por acreditarem que mereçam reconhecimento, mas por um desejo irreprimível de retribuir por todos os aprendizados e experiências, movidos por um senso de dever que só poderia ter como objetivo final a mesma busca pela perfeição que empregam no seu trabalho diário. É inegável que Jiro e sua família tenham defeitos, e mesmo que inspiradora, a sua obsessão pelo trabalho pode ser problematizada (como a de muitos outros artistas-artesãos foram; Bergman é um desses casos), especialmente à luz do capitalismo frenético que engole o Japão. Mas é justamente essa complexidade que torna tão bela a obra de David Gelb, que longe de querer chegar até o espectador com dados ou respostas prefere observar tudo atento, boquiaberto, estudioso – e ainda tirando lições valiosas e criando relações autênticas numa montagem primorosa sem roubar o protagonismo de seu objeto documentado. Alguém poderia argumentar que o filme lança um olhar por demasiado “turístico” sobre o restaurante, que deveria investigar mais a fundo a vida do mestre e sua família, que não problematiza a distorção do coletivo numa sociedade voltada para o privado; ou que não é inventivo o suficiente para configurar um trabalho excepcional. Mas quando se está documentando uma personagem tão complexa quanto Jiro se provou ser, às vezes a melhor postura narrativa que se pode tomar é a do estudante, do ouvinte.


O longa certamente não é perfeito. Algumas escolhas poderiam ser repensadas (por que, depois de finalmente sair do restaurante minúsculo para o enorme mercado de peixes escolher a lente grande angular super aberta? isso sim turístico, uma vontade de “registrar o máximo possível” sem ter nada em foco). A trilha sonora também não agrada muitas vezes, escolhendo “temas clássicos de drama enlatado” que não só destoam demais da cultura oriental como não fazem jus à história e postura de Jiro. De qualquer maneira, essas escolhas não interferem tanto porque afinal, não se pode estar frente a um grande artista – essa paisagem confusa e complexílima – senão como turista (por mais "letrado" ou vivido que se seja).


Assim como Jiro precisa manter a qualidade de seus pratos com os peixes disponíveis no dia, o bom documentarista deve ser capaz de equilibrar as suas intenções fílmicas de acordo com a imprevisibilidade dos fatos, para que se crie o melhor filme possível, sendo o mais justo possível com a realidade. O respeito com que o cozinheiro e seu processo são tratados pelo cineasta, seja nas gravações ou na sala de montagem, permitem que o filme faça jus à atmosfera primorosa do pequeno restaurante e à personalidade cativante do mestre. Jiro é a analogia perfeita ao grande diretor de cinema: artesão talentosíssimo e dedicado, capaz de se preocupar não apenas com a qualidade de seus pratos, mas com tudo o que diz respeito ao seu produto final – da ética e seriedade do time escolhido à disposição das pessoas e objetos na hora da cena. Fonte de inspiração para a sua equipe de primeira, sem a qual não é capaz de realizar nada, mantém com determinação seu ponto de vista e irá discuti-lo sem medo com argumentos consolidados, e chegar em conjunto a um consenso. Rebelde bem vivido, aprenderá com a maturidade as virtudes do respeito, da honra e da disciplina, sem deixar de lado a irreverência e a experiência como fontes de criatividade. Tanto na culinária como na arte, campos subjetivos, não importa o quanto se tente: o resultado final dependerá do paladar do cliente. Mas o bom chef e o bom documentarista têm o poder de instigar e apurar o gosto dos outros. “Para fazer comida deliciosa você deve comer comida deliciosa. Sem um bom paladar você não pode fazer comida boa” diz Jiro. Podemos concluir que David Gelb tirou algumas lições valiosas do mestre shokunin.



Referências

além dos filmes e artistas citados.




199 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page